domingo, 17 de agosto de 2008

BICHO CURIOSO

O homem é bicho curioso. Pode quebrar a cabeça sobre como dividir o invisível – e chega na fissão nuclear, ou como enfeitar o que não se esconde – e inventa coques pra Amy Wirehouse, ou como superar a falta de pelos e garras – e cria vestidinhos e talheres, antibióticos, geladeiras e tiaras, mas quando passa a se meter onde não é chamado, perguntar o que não deve e batalhar o que não precisa, inventa reality shows – e isso me dá nos nervos porque nem zapear em paz é possível sem tropeçar nessas pragas.
Duas coisas fundamentalmente me irritam nos ditos: não têm nada de realidade e nada de espetaculares. E uma terceira, de lambuja: seus participantes são, invariavelmente, sem uminha exceção que seja, consumados idiotas. São tão ruins que estão mais pra shit stuff, ou troço de merda, pra bom português que se baste. Pra piorar, dominam a programação de TV, colocando-me na contramão de todos os índices de audiência, por uma simples razão: não tenho, nunca tive, desejo de saber como os outros comem, dormem, trepam ou se esfregam, ações que não passam de variações tediosas sobre um mesmo tema – nossa animalidade.
O que me fascina, o que me dá vontade de botar o olho na fechadura não da porta mas da mente, é o ponto de transcendência, aquele ponto em que, definitivamente, nos diferenciamos de todas as espécies conhecidas. O real está aí, dá as caras e as cartas, queiramos ou não. A imaginação, ao contrário, não pertence ao plano das evidências, demanda sentidos e processos sobre os quais geralmente não temos idéia ou controle, nos conecta com outros universos. É o esteio da arte, meu gol de placa preferido.
No reino da criação, onde distinções de tempo-espaço-forma-matéria não fazem sentido, tenho muitos amigos. Ursula, de Macondo, é um tipo inesquecível, porém com tantas levitações e formigas nos encontramos pouco. Montalbano é temperamental e adora dar esporro por qualquer coisa, contudo é a melhor companhia do mundo na frente de um prato de tortelone com vieiras, quando seu humor desabrocha e o siciliano se derrete todo. Aliás, tivesse ele conhecido Nero Wolfe ou Pepe Carvalho e a trinca da gula atingiria os píncaros.
Já com Nathan Zuckermann a coisa é diferente, papo sério, cabeça, nada de piadinha barata, no máximo finas ironias, e lascívia, claro, muiiiita lascívia. Nesse particular, faria sucesso com Justine, a que deixou o quarteto de Alexandria em polvorosa e Lawrence Durrell tão desamparado que não sossegou até reinventar um quinteto, dessa vez em Avignon. Pois bem, dá pra dizer que a vida de Nathan é uma novela, ou seis ou oito, não tenho certeza, de minha parte garanto no mínimo três, mas uma coisa é certa: não merecia morrer agora. Fiquei arrasada com a notícia, não se deixa um amigo na mão. Desconheço detalhes de sua morte porque "O fantasma sai de cena" ainda não saiu da prateleira pra poltrona, onde atualmente converso com uma paulista criada por um norueguês e que perambula em busca de amor na Austrália. Durma-se com um enredo desses!
A questão é que dialogo muito mais com a criatura do que com o criador. Algumas são tão admiravelmente concebidas que se eternizam, passam a fazer parte da história concreta do homem: Tristão e Isolda, Hamlet, Édipo, Antígona, Bovary, são luminares do comportamento humano, de passar de pai pra filho, nem que seja por meio de Freud. Então pra que saber como é o Philip Roth, o Garcia Marquez, o Pérez-Reverte, se eles são santos ou safados, se sujam ou reciclam, são simpáticos ou nem dão bom dia? Não há pergunta que mereçam ou resposta que nos satisfaça, o que eles têm de melhor já foi ou está sendo nos dado através de suas obras, é por meio delas que se faz a luz que, em síntese, é o que interessa. Quer show de verdade? É moleza: pegue um livro.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

VOCÊ VIU O CABEÇÃO POR AÍ?

O cabeção tá chegando. Depois de um mês de preparações, adiamentos, dúvidas, tá chegando o cabeção. Já me decidi: vou botá-lo contra a parede. Cara a cara, olho no olho, assim vai ser. Alguns dizem que pode ser intimidante, desconfortável essa proximidade sem volta, que é preciso muita coragem encarar a coisa desse jeito. É verdade, mas também é verdade que tem horas em que é preciso pagar pra ver e ponto. O cabeção tá chegando.

sábado, 3 de maio de 2008

BISONTICES

Ele arde como se um bisão estivesse à espreita na estepe gelada. Mas nem bisões nem estepes fazem parte de meu universo, restrito ao asfalto da cidade e ao conforto de minha sala onde o fogo, simplesmente, arde. O primitivo habita apenas os arquétipos cujo significado busco em livro e entrego ao psicanalista para servir-lhe de consolo ante a resistência pétrea do que chamamos psiquê e os antigos de alma. Mesmo assim, à medida que a noite e o frio avançam, uma nostalgia de caverna toma conta de mim. De quando os sentidos eram plenos e a razão quase nula. Envolta em peles, carne, sangue, e carvão para desenhar. Caninos fortes, narinas salientes, nervos reflexos, mãos que agarram, cavam, miram, matam, saciam. Elementar assim.

UAÚ

Com um último suspiro cravo o espinho no peito e vou à rua, à luta, às ganas.
Em algum lugar haverá espaço para o meu luar.

BICHO DE ESTIMAÇÃO

Meu bicho de estimação é bípede, racional quando consegue, instável, cruel e generoso, tribal e individualista, o maior predador de todos. Tem dias que ele me provoca raiva, outras me acende, deixa indiferente, cansada, burra. Mas é minha tribo, fazer o que?

HORA DO VAVAU

Que não reste dúvida: minha vocação pra Brigitte beira o zero. Ao contrário da Bardot, miados e latidos não suscitam em mim os aiaiai-uiuiui que se ouve amiúde nos parques e adjacências quando uma lulu passa carregando outra.

Sou do tipo que sintoniza no Animal Planet pra pegar no sono, não para me enternecer com os folguedos de leõezinhos nas savanas africanas, acho que isso já diz tudo.

O problema é que não me acham legalzinha se não me amarro em bichinho.

Em termos de julgamento moral, conta mais gostar de quatro patas do que de duas, sinal do quanto nos depreciamos enquanto tribo.

A verdade é que não desgosto dos bichanos, apenas os considero pelo que são – animais. Desconfio de quem declara amor aos ditos mas não abre mão de cobri-los de boina e vestidinho, apelido de madame, porta fechada e colo – o bicho estimado aí é o ego do dono, não o vavau que lhe lambe as pernas.

MIRA SÓ

As fechaduras dormem sossegadas por onde ando. Posso meter-lhes uma chave, se a liberdade der comando, mas o olho passa ao largo, desinxerido como ele só.
Dizem que é bom ser curioso, sinal de apego à vida, troço assim, mas quem disse que é pelo olho que se vê?

segunda-feira, 14 de abril de 2008

VACA AMARELA

Se tem uma coisa que sempre esqueço é o nome das crateras da lua. Dizem que tem um ponto que nunca é completamente escuro nem claro, uma espécie de limbo lunar onde os finlandeses, que tem um verão ridículo de tão pequeno, provavelmente adorariam morar, ainda mais com a Terra posando de lua pra eles.
Eu também gostaria de dar uma chegadinha lá. Não pela luz (a de Porto Alegre no outono dá de dez a zero), nem pela companhia (gelado por gelado prefiro picolé) mas pelo silêncio, supondo-se, claro, que os finlandeses não levem seus nokia pra lá, eles são muito apegados a seus inventos. Me imagino com os pés balançando a beira do Mar da Serenidade – nome bonito demais pra uma cratera, mas os cientistas são uns românticos, mesmo quando acertam no nome e erram na substância (cadê o H2O?) – na maior paz, esperando que um monolito apareça e me dê resposta pra tudo ou, na falta de deus, um astronauta disposto a tudo.
A vista do nosso planeta cintilando de azul no horizonte também deve ser de encher os olhos, uma razão a mais para arranjar um namorado de arrancada. Tímido, de preferência, pra poder curtir a quietude sem chiado.
Tirei uma palhinha do que seria isso quando estive na Patagônia. Horas e horas de viagem por entre pó, pedra, vento e ovelhas, até chegarmos a um bosque petrificado onde nada se via ou mexia. Chamar de ‘bosque’ uns troncos pedregosos espalhados por terra a perder de vista é um primor de exagero, mas os hermanos fazem bem em preservá-lo – em algum lugar do mundo temos que nos dar conta de nossa insignificância.
Afastei-me do grupo e fiquei lagarteando sobre uma rocha, apreciando o raro momento de calor depois de suas semanas em meio às geleiras do extremo sul. Comecei a sentir um zumbido nos ouvidos. Pensei em insetos, mas uma boa olhada em volta mostrou-me onde me encontrava: em meio ao nada na enésima potência, algo assim. Nem um mosquitinho pra chamar de meu.
Percebi então que o zumbido não era sinal de presença, mas de absoluta ausência de qualquer som. Acostumados a buzinas, gritos, estampidos, sirenes e funk por todos os lados, os tímpanos vibravam é de abstinência. Uma variante do ‘delirium siemens’, creio eu, que tanto aflige os brotinhos de celular, porém com seqüelas mais positivas – aprendi a amar espaços vazios.
A Terra é tagarela. Não pára quieta um instante. Zumzumzum, lerolero, disque-disque, rrrrrum-rrrrrum, baticum, sons que se multiplicam em velocidade geométrica inversa à de seu conteúdo e apenas duas orelhas pra todo serviço.
Se a intenção por trás dessa zoeira toda é avisar pra via-láctea que, ssssim, estamos aqui, dou a maior força, mas se for só pra atordoar chapeuzinho enquanto seu lobo não vem, então, bródi, tá mais do que na hora de calar o bico e aprender a ouvir. Em algum lugar do espaço asas farfalham sobre nós.
Vaca amarela!

domingo, 13 de abril de 2008

ME ENGANA QUE EU GOSTO

O segredo foi passando de mão em mão, bem dobrado e amarrotado como convém aos segredos. Dei uma lida rápida e o enfiei no fundo da bolsa, onde apodreceria entre restos de engov, tocos de batom e canetas estéreis, não fosse o mestre ditar o jogo: deveria ser apropriado, alterado e exposto perante todos, sob os auspícios do bem fazer literário, cada um com o seu alheio. Coube a mim nesse gerúndio: “traí, traí não movida pelas circunstâncias mas pela vontade, traí com gosto, traí porque quis”.
Dá-lhe guria! Bota chifre e não se arrepende! Pena que teve que socá-lo pra dentro da mentira antes que ele lhe explodisse na cara. Daí o segredo, que só conheceu a luz graças ao anonimato de uma sacola cheia deles, distribuídos aleatoriamente, com grande chance de terem todos o mesmo tema: traição. Eu sou teu, você é minha e ninguém mete a mão até ordem o contrário. Ahã.
Não sei quem teve a infeliz idéia de botar cabresto no sexo, mas desde então pagamos todos os pecados para tentar provar que civilizadinhos somos. Ora, nada mais selvagem do que pactuar que não somos animais. Sexo é foda. Simples assim. Precisa dizer mais?
Para a maioria dos amantes e dos governos, precisa.
O ex-governador de NY, por exemplo. Tem que ser muito puritano ou burro pra olhar o sujeito e não se dar conta do que é feito, o cheiro deve ser perceptível a quilômetros. No entanto, construiu sua carreira perseguindo aquilo que de fato o perseguia: ver a coisa pegar fogo. Por azar, ardeu no seu. Teve que levar a mulher, com a maior cara de chucrute do mundo, pra pedir perdão em rede nacional por ser o hipócrita que poucos duvidavam que fosse. Para apimentar o prato cheio da reviravolta política, uma pitada de puta pátria – era brasileira a queridinha do chefe. O paraíso do turismo sexual infantil agradeceu a referência recebendo a moça com honras de galisteu, galardão atribuído apenas a quem dá pra rock star, mesmo assim só depois de confirmada a prole ou o programa de TV. Coisa fina mesmo.
Com tanto alvoroço, só restou ao rei da maçã renunciar e recolher-se ao lar, doce lar, na companhia da esposa que a essa altura deve estar reinventando mais e melhores usos para a palavra ‘inferno’. Fustigado pelo exemplo do antecessor, o que faz o novo governador ao tomar posse? Também na companhia da sua ilustríssima confessa, em coro com ela: sou pecador! sou traído e traidor! mea culpa, mea maxima culpa!
Good for you, panaca. Todo mundo sabe que sexo & poder são um binômio imbatível na história da humanidade, os troianos que o digam, mas submeter o interesse público ao pêndulo de um pênis é reduzir a política a um reality show vagabundo, coisa que nem mesmo ianque merece, a despeito de ser sua a estratégia de botar na conta do Freud o que seria da conta do Marx.
Se sob os holofotes o papo é esse, entre os amantes não poderia ser diferente. Seja no público, seja no privado, sexo é, sim, pau pra toda obra. Instrumento de dominação e libertação, é por ele que nos definimos e matamos, como gente e como tribo. Assim, os cornos que me perdoem, mas trair é fundamental.
Ainda bem que Madame Bovary não sou eu.

domingo, 23 de março de 2008

QUEM EU ODEIO COM MUITO AMOR

O que faz de um homem um homem? Busco resposta honesta, saída pela genitália não vale. Matuto daqui, matuto dali, tento ser subserviente a meus imperativos intelectuais mas o que mais me ocorre quando a palavra Homem soa na cachola ainda é um bom clooney, um senhor cowboy, botas, poeira, espora, esporro e picas. Por que cargas d´água deserto vem a reboque dessa fantasia melhor não aprofundar, mas acho que tem algo a ver com o John Wayne mandando bala primeiro pra perguntar depois, cheio de moral pra justificar tanto tiro em tão pouco índio. Então é isso: moral. O homem se faz pela moral.
Moral! Até na pronúncia a palavra se enche de ar quando rola boca afora, botando banca, prenunciando circunstância. Feita sob medida para alavancar carreiras e destruir reputações, a moral é, por natureza ou definição, elástica, volúvel, instável e sujeita a intempéries filosóficas de toda ordem. Em termos de valor, portanto, promíscua a mais não poder. Talvez por isso seja a preferida dos homens que se definem como tais. “Um homem de moral não fica no chão” a música entrega, sem meio termo. E sabem de uma coisa? Eu gosto disso, gosto de homem que estufa o peito e diz que sabe, que é, que como que não. Mesmo que não seja. Vale pela vontade de ir além do figurino, dos genes, da moldagem equânime que tipifica o social. Vale porque daí advém a responsabilidade não apenas pelo que se é, mas pelo que se pretende. Pelo futuro, em síntese.
Homens assim, portanto, umedecem-me profunda e sensivelmente, tocam umas cordinhas lá dentro que só vendo. Tudo bem, sem problema. O xisdequestion acontece quando o valor se agrega a quem não está no rol dos meus humanos favoritos, antes pelo contrário. Àqueles que para serem definidos como canalhas pouco ou nada falta, que te fazem esconjurar três vezes na madeira quando aparecem na área, que mexem com o equilíbrio precário entre o que se crê e o que se pensa querer.
Balaio cheio esse. Comporta de tudo, do mais próximo ao mais distante: colega, artista, político, vizinho, é qualquer um que suscite aquele ladinho negro que mais se rejeita e do qual não se prescinde. E que lança sua sombra justo sobre o que de alguma forma te fundamenta – fome de amor, carência de idéias, ânsia por fama, sede de poder, o que for – o fato é que você não gosta do que vê, menos ainda do que sente, mas está ali, bem ali. Na lata, e você detesta. Quando o dito cujo tem seu charme tudo se explica, que mulher sem um bom cretino no currículo desmerece o gênero, ruim é quando o objeto de interesse é horroroso sob todos os aspectos possíveis, é estúpido, preconceituoso, reacionário, implicante, mal humorado, piolhento.




O Nelson Rodrigues, por exemplo. Dá pra conceber tipo mais asqueroso? Meio amarelado, sempre amarfanhado, arrastando os pés e a fala enquanto vituperava contra tudo e todos as verdades sórdidas de que se dizia conhecedor. Candidato perfeito ao título de nojentinho nota dez, não fosse um detalhe e tanto: escrevia, escrevia bem, escrevia muitíssimo bem o desgraçado. Tanto que era para a sua crônica que meus olhos corriam ao abrir a Folha da Tarde, em tempos pra lá de idos. A leitura, claro, se fazia entre bufos e resmungos, ainda mais quando o teor versava sobre política ou mulheres (os 500 decotes, ele adorava falar dos jantares de 500 decotes) e terminava, invariavelmente, com uma boa praga lançada sobre o escritor, sem maior eficácia, receio, pois no dia ou semana seguinte era para ele que eu voltava, tão indignada quanto sedenta por seu torpe verbo.
Quando mais tarde mergulhei na obra dramatúrgica de Nelson, o fascínio pelo menos encontrou justificativa, pois aí seu papel, ao contrário da política, mostrou-se revolucionário, merecedor de entusiásticos elogios. O cara podia ser um calhorda, mas ter colocado um sistema moral no esteio de sua arte merece meus respeitos, ah, se merece. Como também fez por merecer todas as críticas e brigas em que se meteu com boa parte da inteligência pátria, a mesma que agora o incensa graças à ação do tempo, que tudo, tudinho apaga ou embranquece, como se sabe. Tempo que também trouxe outros à minha baila, com destaque para Paulo Francis e umas estrelinhas anãs que fizeram seu estrago, mas ficaram para trás.
O que restou de tudo isso? A moral, claro, sempre ela. Que anda tão escassa que me faz sentir falta até de modelito ultrapassado, armadura de castelo, de homem sessão das duas. De quem sustente valor sem receio de perder ou apanhar, sem medo de encarar, por ter o que defender. Vale dizer, homem com H maiúsculo mesmo que seja uma M. Que mereça ser cuspido e lambido. Alguém para se odiar da maneira mais autêntica que existe: amando. Só na moral.

DANDO O TROCO

Botou o dedo bem em cima da cifra – trinta e sete reais e oitenta centavos, os dez por cento incluídos – curvou-se o que pôde a bem de bater olho com olho e perguntou, na maior caradura, se era esse mesmo o valor a ser debitado. Tasquei-lhe um baita sorriso em cima do cartão e não titubeei: desconta quarenta! Pra duas casquinhas e uns chopinhos tava mais do que bem pago, ele que fosse cuspir bile em cima de outro, não me sujeito a espertezas. O que não me impede de reconhecer que essa é uma mania nacional – tirar vantagem, nem que seja no grito ou na manha. Independentemente disso, porém, o sorriso amarelo continua, e azeda o chope. Culpa fermentada com lúpulo, só pode ser isso.
Já minha parceira de happy-hour, recém chegada da sua décima temporada nos Esteites, não se deixa abater por tais atitudes, antes pelo contrário, é aí mesmo que espana as plumas e arremete o discurso, cheia de razão. Diz Marcinha (o nome verdadeiro é impronunciável e indigno das colunas sociais que alimenta a custo de Don Perignon), num tom de voz alto o suficiente para atingir o alvo e não admitir interrupções: “Eu, que já viajei muito, vivo de mala pra cá e pra lá, posso dizer, com a maior sinceridade: ninguém dá gorjeta como o brasileiro. Não mesmo. Americano, por exemplo. Americano tem mania de gorjeta, qualquer carregador, porteiro, atendente, até motorista de táxi!, exige a sua e faz a maior cara feia se acha que é pouco. Te alcançou o cinzeiro, abriu porta, passou paninho, fez a cama? Gorjeta neles! Garçom, então, se der menos de vinte por cento são capaz de cuspir no prato, uma verdadeira extorsão, ainda mais considerando aqueles troços que eles comem, que só servem pra engordar mesmo, gosto que é bom, necas. É de chorar, como a última vez em que fui num restaurante indiano super badalado pros lados do Village, nem lembro o nome da espelunca, só sei que depois de aguardar horas pela comida, um grude amarelo e marrom inclassificável, não sabia se chorava pela papa ardida ou pelo desplante do garçom, um magricela espinhento e meio pretinho, que se recusou a trazer cerveja para não prejudicar ‘o desfrute do paladar’. Paladar! Quase soltei-lhe uns tabefes, isso sim. Merecia gorjeta um sujeitinho desses? Claro que não! Mas americano tem dessas coisas, ao mesmo tempo que têm pavor de comuna também morrem de medo das Union, eles não sabem controlar sindicato como a gente, então ninguém se atreve a botar esse povinho no seu lugar, e é por isso que eu digo, não tem como brasileiro pra dar gorjeta. E sabe por que? Porque aqui a gente não dá bola só pra dinheiro não. É dez por cento? Então vai ser dez por cento! Qual o problema? O importante mesmo é ter prazer de servir, é estar sempre sorridente, fazendo com alegria seu trabalho, entende? E se fez mal não leva, simples!”
Tanta simplicidade, claro, recebeu troco. Quatro pneus furados e um belo risco na lateral do Mercedinho importado sobre o qual minha amiga teceu loas e loas no início da noite. Nenhum flanelinha para cobrar, nenhum azulzinho a quem se queixar, da janela do restaurante um solitário garçom brindava, com melífluo júbilo, a irrupção da chuva sobre as lágrimas recém-chegadas de Miami. Miséria pouca nunca é bobagem.

A INVENTADA MORTE DE CLARICE M.

Luciane F. acha absurda a morte de Clarice M. .
Luciane F. se diverte com a inventada morte de Clarice M. – ataque agudo de narcolepsia enquanto manobrava o carrinho cheio do súper numa lomba é coisa de gênio.
Luciane F. analisa as informações que tem e não sabe se inveja a vida ou a morte de Clarice M. Ser capaz de dirigir somente carrinho de súper é coisa de idiota. Isso é fato. Ser capaz de tudo o mais é mais do que sonhou para si?
Luciane F. começa a duvidar do que sabe. Tende a crer no que lhe dizem, entre ouvir e acreditar a distância sempre lhe pareceu mínima. Mas boba não é. E o que está escrito nas duas folhas que amarrota entre as mãos é um pouco demasiado para sua inerente boa-fé. Não pelos eventos em si, perfeitamente factíveis, mas pela explicação que os acompanha, redonda demais, certeira demais, feito filme em off.
Nesse sentido Clarice M. não economizou, o pacote de toda uma vida foi passado bem amarradinho: mais velha de três irmãs, todas disrítmicas e estudiosas, passou a infância sem fazer nada de notório exceto dirimir conflitos sentando sobre eles, padeceu de adolescência cruel o suficiente para ser esquecida, chegou à universidade amparada por testes psicotécnicos que apontavam a magistratura como o destino inevitável, idéia que mandou às favas quando cruzou com o primeiro grupo de teatro, onde aprendeu a desobedecer com propósito e outras tantas coisas de difícil reprodução, ao ponto de resolver trocar o palco de cena pelo palco da história, que a trouxe de volta aos bancos universitários por curto porém expressivo período, até cansar de tudo e dedicar-se às letras e à vida de funcionária pública, fazendo diariamente justiça com as próprias mãos ao digitar as mentiras que ouve nas audiências e cantarolar, ininterruptamente, jingles de margarina.
Tudo temperado por vigorosas noções de justiça, filosofia e uma psicanálise pra lá de barata na hora de justificar o não-casamento, a não-maternidade e outros nãos que deixou pra lá. Afinal, não custa lembrar, é apenas um exercício e, como tal, não carece ser verdadeiro, basta ser verossímil. Luciane F. sabe disso, Luciane F. aceita isso, mas gostaria, bem no fundo, que a moeda fosse outra, que pudesse confiar. Luciane F. aprendeu, desde pequenininha, que mentira tem perna curta, dá trabalho e exige boa memória, coisa que nunca teve.
Então Luciane F. faz o que nunca faz: inventa. E mata Clarice M. de sono.

HAJA PACIENCIA

1.
Idéias não são repolhos. Idéias vicejam, como também os repolhos, idéias se multiplicam, nesse caso como os coelhos, idéias inspiram, idéias matam, idéias cansam a beleza quando estouram sem aviso e te deixam na pena da mão. Frágeis, muito frágeis as idéias. Ergo, valiosas.
2.
Aconteceu há pouco. A notícia do jornal deu-me o material, o professor o tema, neurônio falou com neurônio e, voilá!, a idéia: a impaciência na política ou a importância de um laço bem dado num pacote mal arranjado. Atual, candente, assunto de todas as rodas, as eleições municipais se constituíam num mote e tanto para a crônica. Feito.
3.
Então o cinema perde um dos seus e o que parecia uma ótima idéia sobre o exercício da paciência sucumbe ante a entrada – ou melhor, definitiva saída de cena de um mestre em pôr à prova tão precária virtude. Não. O PT que me perdoe, quando um inglês morre algum bardo se revira na tumba e teias se alvoroçam, palavras se impõem. Sai Rosário, entra o calvário.
4.
Morre Anthony Minghella. Deixa como legado uma montanha gelada e um paciente inglês que, ao contrário de seu autor, não morre nunca. Por meio de uma obra que desafia a sã passagem do tempo, conseguiu a proeza de destronar os chineses, até então insubstituíveis na tortura conta-gotas. No plano pessoal redefiniu conceitos arraigadissimos sobre meu propalado auto-controle, além de me colocar como séria candidata a director killer, se assim dá pra chamar assassino especializado em cineasta burro.
5.
Lembro até hoje: o dia estava bonito, não carecia me enfiar num cinema com outros duzentos turbinados de coca e pipoca, quando poderia borboletear entre plátanos e sarados, qualquer coisa do gênero. Mas não. Paguei pra ver. Botei meu lado macho de escanteio e deixei que a guria romântica escolhesse o filme em que a bela Juliette enfrentava os maiores perigos para salvar uma múmia que não parava de gemer e contar histórias ridículas. Nem quinze minutos transcorridos e meus gemidos já começavam a se sobrepor aos do tal paciente que, coerência über alles, era interpretado por um ator mumificado de nascença, Ralph Fiennes, tão empolgante quanto um coquetel de bolacha maria. (Nesse particular, acho que os ingleses escolhem seus galãs com os mesmos critérios estéticos que seu futuro rei escolhe amantes).

No escurinho, mãos cruzadas sob o queixo, eu intimamente indagava a um deus ausente: mas por que não morre de uma vez?! Fez-se de surdo comigo, o divino, de sorte que pelas infindáveis três horas restantes soluços disputaram com bocejos a primazia dos decibéis, enquanto a Foice não se decidia a quem arrastar para seus domínios: o protagonista ou os espectadores.
6.
Anos mais tarde, o que poderia ser interpretado como acidente de percurso de principiante revelou a natureza perversa do britânico: jogou sobre o público duas loiras geladas (e não é de cerveja que estou falando) num cenário insípido como o enredo. Ou seja, malvado e reincidente.
7.
Aprendi desde criança que é feio desejar mal para alguém, não se faz. Mas toda regra admite exceção e os chatos a merecem plenamente. Porque o chato é um tediopata, digamos, um insensível social que deve ser escorraçado de pronto, pois ataca em meios com pouca capacidade de defesa como salões semivazios e cinemas lotados. Neste último caso a situação se complica quando o cineasta, além da dinheirama que recebe para aborrecer o alheio, conta com o apoio de outra categoria que faz do tédio profissão de fé: críticos de cinema, os tais que acham Glauber o máximo, o Irã a meca do cinema moderno e botam a maior pilha pros incautos assistirem coisas que eles mesmo detestam. Bom, merecem uns pensamentos bem feinhos eles todos.
Morre Anthony Minghella. Antes tarde do que nunca.