domingo, 23 de março de 2008

DANDO O TROCO

Botou o dedo bem em cima da cifra – trinta e sete reais e oitenta centavos, os dez por cento incluídos – curvou-se o que pôde a bem de bater olho com olho e perguntou, na maior caradura, se era esse mesmo o valor a ser debitado. Tasquei-lhe um baita sorriso em cima do cartão e não titubeei: desconta quarenta! Pra duas casquinhas e uns chopinhos tava mais do que bem pago, ele que fosse cuspir bile em cima de outro, não me sujeito a espertezas. O que não me impede de reconhecer que essa é uma mania nacional – tirar vantagem, nem que seja no grito ou na manha. Independentemente disso, porém, o sorriso amarelo continua, e azeda o chope. Culpa fermentada com lúpulo, só pode ser isso.
Já minha parceira de happy-hour, recém chegada da sua décima temporada nos Esteites, não se deixa abater por tais atitudes, antes pelo contrário, é aí mesmo que espana as plumas e arremete o discurso, cheia de razão. Diz Marcinha (o nome verdadeiro é impronunciável e indigno das colunas sociais que alimenta a custo de Don Perignon), num tom de voz alto o suficiente para atingir o alvo e não admitir interrupções: “Eu, que já viajei muito, vivo de mala pra cá e pra lá, posso dizer, com a maior sinceridade: ninguém dá gorjeta como o brasileiro. Não mesmo. Americano, por exemplo. Americano tem mania de gorjeta, qualquer carregador, porteiro, atendente, até motorista de táxi!, exige a sua e faz a maior cara feia se acha que é pouco. Te alcançou o cinzeiro, abriu porta, passou paninho, fez a cama? Gorjeta neles! Garçom, então, se der menos de vinte por cento são capaz de cuspir no prato, uma verdadeira extorsão, ainda mais considerando aqueles troços que eles comem, que só servem pra engordar mesmo, gosto que é bom, necas. É de chorar, como a última vez em que fui num restaurante indiano super badalado pros lados do Village, nem lembro o nome da espelunca, só sei que depois de aguardar horas pela comida, um grude amarelo e marrom inclassificável, não sabia se chorava pela papa ardida ou pelo desplante do garçom, um magricela espinhento e meio pretinho, que se recusou a trazer cerveja para não prejudicar ‘o desfrute do paladar’. Paladar! Quase soltei-lhe uns tabefes, isso sim. Merecia gorjeta um sujeitinho desses? Claro que não! Mas americano tem dessas coisas, ao mesmo tempo que têm pavor de comuna também morrem de medo das Union, eles não sabem controlar sindicato como a gente, então ninguém se atreve a botar esse povinho no seu lugar, e é por isso que eu digo, não tem como brasileiro pra dar gorjeta. E sabe por que? Porque aqui a gente não dá bola só pra dinheiro não. É dez por cento? Então vai ser dez por cento! Qual o problema? O importante mesmo é ter prazer de servir, é estar sempre sorridente, fazendo com alegria seu trabalho, entende? E se fez mal não leva, simples!”
Tanta simplicidade, claro, recebeu troco. Quatro pneus furados e um belo risco na lateral do Mercedinho importado sobre o qual minha amiga teceu loas e loas no início da noite. Nenhum flanelinha para cobrar, nenhum azulzinho a quem se queixar, da janela do restaurante um solitário garçom brindava, com melífluo júbilo, a irrupção da chuva sobre as lágrimas recém-chegadas de Miami. Miséria pouca nunca é bobagem.

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