sábado, 27 de fevereiro de 2016

PERVERSÃO

TUDO QUE É - 371 páginas para contar a vida de Bowman, editor nova-iorquino, e nada de relevante pra se extrair daí. O protagonista (protagonista mulher é coisa de mulher) é editor, escritor, professor ou artista, que circula por Londres-Paris-NY e, seja qual for sua idade, não para de comer mulher, uma mais gostosa que a outra, as barangas ficam pra quem escreve sobre encanador, mas pra isso o autor tem que ser Faulkner e o leitor não pode ser eu. Paixão, viagens, sexo, jantares e encontros recheados de nada, moral zero, tudo o mais fica pra outro dia, outro romance, outra América, talvez. Nada que ultrapasse o tête-à-tête até o final, carpe diem. 371 páginas e só na 365 encontrei algo que merecesse reflexão: “Não gosto da palavra gay”, ele disse. “Os imperadores romanos não eram gays. Eles nadavam nus em piscinas com rapazinhos treinados para o prazer, mas parece estranho chamá-los de gays. Depravados, viciados em prazer, pederastas, mas não gays. Isso destrói a dignidade da perversão”. 
“Isso destrói a dignidade da perversão”. Que frase! Até a perversão tem o direito de ser chamada pelo que é, um desvio da norma que passou a ser ignorado em nome de uma aceitação geral que acaba em casamento, batismo, sacramento. So what?  Destruir a dignidade das palavras é o resultado mais visível do politicamente correto. Outro é escamotear o fato em benefício da linguagem. Tanto faz se você é machista ou chauvinista, desde que não me conte, não se mostre. Tapetão sujinho esse. Pode haver, creio, aspectos positivos no uso dessa política, não se sentir agredido por preconceitos, por exemplo, mesmo que eles continuem habitando o sujeito que te rasga com os olhos de boca fechada. Pode ser. Porém restituir à palavra sua dignidade me parece essencial. Qual o problema de ‘anão’, ‘negro’, ‘gordo’? Não são insultos, não são reduções, são palavras que dizem o que uma coisa é. Eu sou gorda, não fofinha nem lateralmente avantajada. Gorda. Isso não me ofende. Me ofende o preconceito, a grosseria, a presunção da verdade sobre premissas mentirosas. Dá uma tristeza ver alguém dizer o que pensa e, 15 minutos depois, sair correndo a se desdizer, pedir desculpas, não sei o que eu tinha na cabeça, sorry, sorry, sorry. Recall de sinceridade é patético. Bem dizia o Jair Rodrigues: deixa que digam, que pensem, que falem. Sem isso, como debater e, de fato, no tutano, mudar alguma coisa? Abaixemos as armas. Às palavras! Cruas, por favor.  


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

CLARICE

Tenho que fazer as pazes com minha xará. No mínimo porque Clarice Lispector é considerada a maior escritora brasileira, pra quem todo mundo bate cabeça. Menos eu e uma meia dúzia de renitentes, por razões que nem sei explicar. Vem da infância, acho (e por infância me refiro àquele período da vida em que a família, de um modo ou de outro, ainda dá as cartas), das matérias que lia sobre ela na revista Cruzeiro, um rosto nada simpático, um jeito de falar carregado nos erres que acentuava ainda mais a arrogância que eu lhe atribuía, embora digam que ela não era assim, mas quem sabe como somos? Essas impressões primeiras, por burras que sejam, às vezes nos acompanham a vida inteira e está na hora de mudar esse panorama. De algumas não pretendo abrir mão, Nelson Rodrigues, por exemplo, a quem repudio com gosto até hoje porque acho que era um canalha e ponto final. Não é o caso da Lispector, de quem li muito pouco para formar um julgamento consistente e que não resistiu a poucas páginas da barata, bicho que me desgosta até literariamente, só Kafka pra sobreviver a meu asco. Mas um caro amigo disse que estou pronta pra Clarice. Marcelino Freire, que me presenteou com um exemplar autografado por ela, veja só, também. Então creio estar na hora de fazer as pazes com essa senhora. Bônus extra é que Clarice desperte Clarice, adormecida das letras há tempo demais pra quem é chegada numa palavrinha. Outro bônus: conhecer um autor com muitos livros publicados e que nos diz coisas relevantes é presente dos deuses. No momento, minha cabeceira está vazia deles. Mas a fila anda e Clarice se aproxima. Qual delas?