domingo, 17 de agosto de 2008

BICHO CURIOSO

O homem é bicho curioso. Pode quebrar a cabeça sobre como dividir o invisível – e chega na fissão nuclear, ou como enfeitar o que não se esconde – e inventa coques pra Amy Wirehouse, ou como superar a falta de pelos e garras – e cria vestidinhos e talheres, antibióticos, geladeiras e tiaras, mas quando passa a se meter onde não é chamado, perguntar o que não deve e batalhar o que não precisa, inventa reality shows – e isso me dá nos nervos porque nem zapear em paz é possível sem tropeçar nessas pragas.
Duas coisas fundamentalmente me irritam nos ditos: não têm nada de realidade e nada de espetaculares. E uma terceira, de lambuja: seus participantes são, invariavelmente, sem uminha exceção que seja, consumados idiotas. São tão ruins que estão mais pra shit stuff, ou troço de merda, pra bom português que se baste. Pra piorar, dominam a programação de TV, colocando-me na contramão de todos os índices de audiência, por uma simples razão: não tenho, nunca tive, desejo de saber como os outros comem, dormem, trepam ou se esfregam, ações que não passam de variações tediosas sobre um mesmo tema – nossa animalidade.
O que me fascina, o que me dá vontade de botar o olho na fechadura não da porta mas da mente, é o ponto de transcendência, aquele ponto em que, definitivamente, nos diferenciamos de todas as espécies conhecidas. O real está aí, dá as caras e as cartas, queiramos ou não. A imaginação, ao contrário, não pertence ao plano das evidências, demanda sentidos e processos sobre os quais geralmente não temos idéia ou controle, nos conecta com outros universos. É o esteio da arte, meu gol de placa preferido.
No reino da criação, onde distinções de tempo-espaço-forma-matéria não fazem sentido, tenho muitos amigos. Ursula, de Macondo, é um tipo inesquecível, porém com tantas levitações e formigas nos encontramos pouco. Montalbano é temperamental e adora dar esporro por qualquer coisa, contudo é a melhor companhia do mundo na frente de um prato de tortelone com vieiras, quando seu humor desabrocha e o siciliano se derrete todo. Aliás, tivesse ele conhecido Nero Wolfe ou Pepe Carvalho e a trinca da gula atingiria os píncaros.
Já com Nathan Zuckermann a coisa é diferente, papo sério, cabeça, nada de piadinha barata, no máximo finas ironias, e lascívia, claro, muiiiita lascívia. Nesse particular, faria sucesso com Justine, a que deixou o quarteto de Alexandria em polvorosa e Lawrence Durrell tão desamparado que não sossegou até reinventar um quinteto, dessa vez em Avignon. Pois bem, dá pra dizer que a vida de Nathan é uma novela, ou seis ou oito, não tenho certeza, de minha parte garanto no mínimo três, mas uma coisa é certa: não merecia morrer agora. Fiquei arrasada com a notícia, não se deixa um amigo na mão. Desconheço detalhes de sua morte porque "O fantasma sai de cena" ainda não saiu da prateleira pra poltrona, onde atualmente converso com uma paulista criada por um norueguês e que perambula em busca de amor na Austrália. Durma-se com um enredo desses!
A questão é que dialogo muito mais com a criatura do que com o criador. Algumas são tão admiravelmente concebidas que se eternizam, passam a fazer parte da história concreta do homem: Tristão e Isolda, Hamlet, Édipo, Antígona, Bovary, são luminares do comportamento humano, de passar de pai pra filho, nem que seja por meio de Freud. Então pra que saber como é o Philip Roth, o Garcia Marquez, o Pérez-Reverte, se eles são santos ou safados, se sujam ou reciclam, são simpáticos ou nem dão bom dia? Não há pergunta que mereçam ou resposta que nos satisfaça, o que eles têm de melhor já foi ou está sendo nos dado através de suas obras, é por meio delas que se faz a luz que, em síntese, é o que interessa. Quer show de verdade? É moleza: pegue um livro.