domingo, 23 de março de 2008

QUEM EU ODEIO COM MUITO AMOR

O que faz de um homem um homem? Busco resposta honesta, saída pela genitália não vale. Matuto daqui, matuto dali, tento ser subserviente a meus imperativos intelectuais mas o que mais me ocorre quando a palavra Homem soa na cachola ainda é um bom clooney, um senhor cowboy, botas, poeira, espora, esporro e picas. Por que cargas d´água deserto vem a reboque dessa fantasia melhor não aprofundar, mas acho que tem algo a ver com o John Wayne mandando bala primeiro pra perguntar depois, cheio de moral pra justificar tanto tiro em tão pouco índio. Então é isso: moral. O homem se faz pela moral.
Moral! Até na pronúncia a palavra se enche de ar quando rola boca afora, botando banca, prenunciando circunstância. Feita sob medida para alavancar carreiras e destruir reputações, a moral é, por natureza ou definição, elástica, volúvel, instável e sujeita a intempéries filosóficas de toda ordem. Em termos de valor, portanto, promíscua a mais não poder. Talvez por isso seja a preferida dos homens que se definem como tais. “Um homem de moral não fica no chão” a música entrega, sem meio termo. E sabem de uma coisa? Eu gosto disso, gosto de homem que estufa o peito e diz que sabe, que é, que como que não. Mesmo que não seja. Vale pela vontade de ir além do figurino, dos genes, da moldagem equânime que tipifica o social. Vale porque daí advém a responsabilidade não apenas pelo que se é, mas pelo que se pretende. Pelo futuro, em síntese.
Homens assim, portanto, umedecem-me profunda e sensivelmente, tocam umas cordinhas lá dentro que só vendo. Tudo bem, sem problema. O xisdequestion acontece quando o valor se agrega a quem não está no rol dos meus humanos favoritos, antes pelo contrário. Àqueles que para serem definidos como canalhas pouco ou nada falta, que te fazem esconjurar três vezes na madeira quando aparecem na área, que mexem com o equilíbrio precário entre o que se crê e o que se pensa querer.
Balaio cheio esse. Comporta de tudo, do mais próximo ao mais distante: colega, artista, político, vizinho, é qualquer um que suscite aquele ladinho negro que mais se rejeita e do qual não se prescinde. E que lança sua sombra justo sobre o que de alguma forma te fundamenta – fome de amor, carência de idéias, ânsia por fama, sede de poder, o que for – o fato é que você não gosta do que vê, menos ainda do que sente, mas está ali, bem ali. Na lata, e você detesta. Quando o dito cujo tem seu charme tudo se explica, que mulher sem um bom cretino no currículo desmerece o gênero, ruim é quando o objeto de interesse é horroroso sob todos os aspectos possíveis, é estúpido, preconceituoso, reacionário, implicante, mal humorado, piolhento.




O Nelson Rodrigues, por exemplo. Dá pra conceber tipo mais asqueroso? Meio amarelado, sempre amarfanhado, arrastando os pés e a fala enquanto vituperava contra tudo e todos as verdades sórdidas de que se dizia conhecedor. Candidato perfeito ao título de nojentinho nota dez, não fosse um detalhe e tanto: escrevia, escrevia bem, escrevia muitíssimo bem o desgraçado. Tanto que era para a sua crônica que meus olhos corriam ao abrir a Folha da Tarde, em tempos pra lá de idos. A leitura, claro, se fazia entre bufos e resmungos, ainda mais quando o teor versava sobre política ou mulheres (os 500 decotes, ele adorava falar dos jantares de 500 decotes) e terminava, invariavelmente, com uma boa praga lançada sobre o escritor, sem maior eficácia, receio, pois no dia ou semana seguinte era para ele que eu voltava, tão indignada quanto sedenta por seu torpe verbo.
Quando mais tarde mergulhei na obra dramatúrgica de Nelson, o fascínio pelo menos encontrou justificativa, pois aí seu papel, ao contrário da política, mostrou-se revolucionário, merecedor de entusiásticos elogios. O cara podia ser um calhorda, mas ter colocado um sistema moral no esteio de sua arte merece meus respeitos, ah, se merece. Como também fez por merecer todas as críticas e brigas em que se meteu com boa parte da inteligência pátria, a mesma que agora o incensa graças à ação do tempo, que tudo, tudinho apaga ou embranquece, como se sabe. Tempo que também trouxe outros à minha baila, com destaque para Paulo Francis e umas estrelinhas anãs que fizeram seu estrago, mas ficaram para trás.
O que restou de tudo isso? A moral, claro, sempre ela. Que anda tão escassa que me faz sentir falta até de modelito ultrapassado, armadura de castelo, de homem sessão das duas. De quem sustente valor sem receio de perder ou apanhar, sem medo de encarar, por ter o que defender. Vale dizer, homem com H maiúsculo mesmo que seja uma M. Que mereça ser cuspido e lambido. Alguém para se odiar da maneira mais autêntica que existe: amando. Só na moral.

Um comentário:

Luciana F. disse...

Da primeira vez, ouvi. Agora, li. Nas duas, adorei. (Adoro quando textos me fazer rir, é terapêutico..). Ainda bem que vc resolveu aderir ao mundo virtual. Bjos!