quarta-feira, 6 de abril de 2011

ÁGUAS DE MARÇO


O povoado vizinho está ao alcance da vista. Ouve-se, à distância, o grito dos galos e dos cães. Ali as pessoas devem morrer velhíssimas, sem jamais ter viajado para longe”.

Um vírus. Só pode ser um vírus. Daqueles que se pega por bobagem, por cheirar ao acaso uma florzinha para a qual não se dá a mínima, por exemplo, mas que acaba transtornando sua vida para todo o sempre, assim, no mais. Só isso poderia explicar a insanidade de ter largado tudo do bom e do melhor para se enfiar na terra do já vai tarde. Não se trata de esnobismo ou má-vontade, como XX vivia apregoando para não ter que reconhecer sua enorme parcela de culpa no processo todo. Aliás, ‘processo’ é uma de suas palavras favoritas, uma espécie de coringa para quando o jogo já acabou e o resultado foi pífio, porém em seus lábios a palavra soa com tanta delicadeza e respeito, tanta convicção, que XY não reage, não mexe um músculo, só morde a língua para conter a vontade de enfiar os dedos por dentro da boca, rasgar a cara e sair gritando. Sorte a dela ele ser um gentleman. 
O começo foi difícil, casa velha, acesso ruim, fauna e flora em demasia, conexões de menos, ganidos, latidos, uivos em substituição a sirenes, buzinas, trombadas, nervos em estado de prontidão, mais ou menos o que era de esperar em se tratando de neófitos no mundo verde. Encarar como desafio, foi isso o que fizeram e, meio por orgulho, meio por preguiça, se deixaram ficar. XX adquiriu novos hábitos com rapidez suspeita – de onde a vontade de caminhadas a toda hora? E aquilo de plantar salsinha, tomate, alface como se alguma vez tivesse posto os pés na cozinha? Sem falar na mania do crochê (reinvenção da infância?) e o costume recém-adquirido de posar de rouxinol: como uma mulher com formação clássica em piano e violino passa o dia cantarolando Bruno e Marrone?!
Ele, por sua vez, cedo cansou de tentar. Tem certas coisas que não dá pra acostumar, é test-drive rapidinho e deu. Para algo deve servir o auto-conhecimento. Atualmente resigna-se a coisas simples como lavar a louça todas as manhãs, sempre de olho na pedra que encima o morro imaginando quanto tempo ainda aquele gigante calcário resistirá ao convite da água para rolarem juntos e empastelarem de vez seu frágil organismo de intelectual sessentão. Podia imaginar cinqüenta mil modos melhores de morrer do que sob o peso de uma montanha, mas como nenhum é do seu agrado, termina logo o serviço e vai até o janelão da sala ver o estrago que a ventania está provocando na pequena ponte que serve de acesso ao mundo ou o que quer que tenha sobrado do outro lado da cortina d´água. Se ela ruir, estarão completamente à mercê dos deuses cujos nomes confunde (Zeus? Eolo?), mas sempre invoca, agnóstico de meia tigela que é. Que venham!  Senta no tatame, cruza os dedos e as pernas, fecha os olhos e solta o mantra: ômmmmmmmmm. De novo: ômmmmmmm. A chuva nem aí pro mantra. O vento ruge mais alto ainda. Dez segundos e uma cãimbra depois XY está de volta à cozinha, em busca de chá.  Que acabou. Depois de uma semana de aguaceiro a despensa está praticamente vazia e o único comentário que obteve de XX foi: a fome purifica. Só se for o caralho! – gritou ele, com direito a ênfase silábica: só se for o ca-ra-lho! Ela: muito refinado da sua parte. Ele: refinado?! refinado?! E mais não soube dizer, de furioso que estava. Ponto para ela. Again.
Espia novamente a pedra.  ‘Se ela rolasse agora, viria direto pra cima de mim, direto, não sobrava nada’. Imagina sua carne dilacerada, sangue e vísceras expostos, XX debruçada sobre seu corpo, inconsolável, pedindo perdão por tudo, jurando nunca mais abandoná-lo, ele magnânimo absolvendo-a de todos os pecados, os bombeiros retirando-a à força porque não quer se separar do amado marido. Não, não, não, não, nada de avalanche, nada de bombeiros. A pedra há de permanecer onde está, há de.
Volta para o escritório, ao encontro dos velhinhos. São lindos eles. Cabelos brancos, avental branco, lenço branco, sorriso radiante, um esbanjamento de vigor a despeito da idade. Vontade de afogá-los, como se faz com gatinhos recém-nascidos. Danada proteção de tela! Foi ao vê-los que XX decidiu que era hora de se mudarem para o interior, vida ao ar puro, saúde, paz, e não descansou até que ele concordasse, ao argumento do infalível ou dá ou desce. Ele deu. Ela cansou. E agora? O que se faz com isso? Com a intempérie, o despreparo, a dor? A falta?
Pega a chave, destranca o armário, retira o fuzil. Gosta do contato da madeira em seu rosto, da maciez da coronha, do estalido que faz quando se abre para a munição, do cheiro de sangue antigo, familiar. Maldição de respeito, pensa ele enquanto as balas caem no tambor. O som da água sobre o telhado abafa os metais de Glenn Miller, mas não a lembrança: ela dançando ao som de In the mood – júbilo e leveza em perfeita comunhão. Os raios explodem em sucessão, o cano experimenta a boca, a casa treme, o rugido aumenta, a lama vence. Enfim uma pedra sobre esse assunto.

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