quarta-feira, 10 de outubro de 2012

FIDALGUIA

GOSTAR. Palavrinha comum e ao mesmo tempo muito propícia a suscitar as maiores polêmicas e até mesmo cizânias quando o bicho da certeza nos morde e bota os reis a estrilar na barriga. Pra maioria de nós, gostar pode passar ao largo de questões como estrutura, sintaxe, gênero e o kit analítico padrão. Pode vir lá do fundo, daquelas áreas meio nebulosas onde mal tocamos e que aos poucos se enriquece com o que vamos adquirindo ao longo da vida, sem falar na multidão de seres imaginários que nos cochicha aos berros quando estamos a ponto de tomar decisões estéticas. É com grande alívio, portanto, que me declaro essencialmente leitora e, como tal, não preciso entender de nada, basta-me o fruir, no ritmo e modo que quiser, das minhas páginas eleitas. Posso dizer, por exemplo, sem receio de me botarem no pelotão de fuzilamento da correção artística: não gosto de Nelson Rodrigues. Não mesmo. Tenho idade suficiente para ter lido as crônicas que ocupavam página inteira na Folha da Tarde, nas quais destilava o que tinha de pior em termos de misoginia, política, moral, sexo. Também estudei suas peças quando cursava arte dramática no CAD, onde a bateção de cabeça pro velho dá nos nervos. Mulheres, padres e comunistas compunham a tríade contra a qual não poupava um milímetro de acidez, assim como todas as formas de sexo, visto sempre na forma de tara e perversão, o que não deixa de ser bem a cara de Nelson, um moralista que fazia parte do primeiríssimo time do reacionarismo. Escrevia muito bem, claro, que burro não era, mas competência não põe mesa quando a serviço dos piores propósitos, come on. E eu, talvez por defeito genético ou estético, sou chegadinha numa fidalguia. Em caras como o Gore Vidal, de quem estou lendo o Lincoln com especial deleite, porque, embora não se furte a espelhar a dor e o horror, não deixa de refletir sobre a grandeza humana, sem a qual a vida é nada, estou certa? Gosto de gente que se posiciona sobre as coisas, que tem bandeiras, que acredita, pensa, faz. Esse papinho de desintegrar tudo numa miscelânea artística sem pé nem cabeça e relativizar valor como se fosse babaquice jurássica é papo de bandido, sinceramente, papo de bandido. Presta um desserviço enorme à cultura. Confesso-me, portanto, fã de escritores que pensam o mundo na escala do universo, e não na arraia miúda da mesquinhez, onde Nelson chafurdava com tudo. Assim, se a coisa for de tomar partido, não me avexo nem um pouco, volto ao tempo das matinês no cinema do meu avô, e bato os pés com força quando o mocinho vem chegando. Xô, Nelson! Viva Vidal!

Um comentário:

Carlos Grassioli disse...

Veja só, acabo de ler uma matéria sobre a polêmica do zero dado à Ana Maria Machado, no prêmio Jabuti. Um dia desses, sem vacilar, dei zero pra Marta Medeiros, que causou um certo desconforto na volta e olhares, do tipo: “quem você pensa que é?” . Respondo aqui: O livro é meu maior vício, portanto sobre ler eu entendo sim e sou criterioso. Penso que não existiriam bons escritores se não existissem bons leitores, né mesmo? E essa coisa de não poder “desrespeitar” determinadas “ instituições”, dá licença! Sem falar em “ Marimbondos sarnentos”, ou determinados Best selers psicografados por espíritos de porco, por exemplo, em relação aos quais eu me sinto no pleno direito pra dar zero sem mesmo ler.
Não li Nelson Rodrigues, conheço só do cinema e do teatro, e independentemente de concordar ou não contigo, Clarice, de dou parabéns pela Coragem.
Carlinhos, - ( publiquei esse mesmo comentário na Palavraria). Abraços