Vidraceiro,
fumageiro, jornalista, industrial, minerador, impressor, acadêmico, tabelião,
comerciante, capitão da guarda, escritor. Não seria por falta de idéias que Netinho,
como a ama o chamava, deixaria de fazer sucesso nas bandas de Pelotas, onde
nasceu nos idos de março de 1865. Terceiro na linhagem dos Lopes, desde piá o
guri não sossegava, inventando de tudo pra não sair de perto da peonada, para
desgosto da viscondessa, mais orgulhosa do título que do neto, para o qual, de
resto, não via muito futuro. Mesmo
assim, mandou que caprichassem na bagagem que o acompanhou ao Rio de Janeiro
quando a puberdade no meio da bicharada tornou-se mais incômoda do que
educativa. A capital federal haveria de ensinar-lhe os modos que os meios
exigiam. Ensinou-lhe muito mais do que isso. A começar pelo clima. O calor
constante, que no início não o deixava dormir, com o tempo foi amansando-lhe o
corpo, relaxando os nervos, desobstruindo caminhos que sequer sabia existirem. E
que se intensificaram expressivamente quando conheceu Olavo, com quem viria a
compartilhar os bancos na faculdade de medicina, poemas discutíveis e, segundo as
más línguas, muito mais do que línguas. Presença constante nas soirées
promovidas por Machado, presença infalível nos teatros e cabarés da Lapa, João
não se fazia de rogado quando o entrudo tomava as ruas e poás e lantejoulas
substituíam o pincenê que o deixava mais vesgo ainda. Nessas horas a descontração
era total, com a dupla Joanita & Bilaquinha causando tanto furor que o
velho visconde não teve outra saída a não ser trazê-lo de volta ao hospitaleiro
ar das charqueadas sulistas. Com a desculpa de saúde frágil, ficou sob a asa
materna até que o avô lhe arranjasse a esposa que assegurasse a honra e a
progênie que nunca veio. João fez a sua parte. Deixou crescer o bigode, passou
a usar óculos e, do antigo amor, preservou apenas o vício de comer negrinhos a
qualquer hora do dia. E umas odes líricas muito bem guardadas no forro de um
antigo chapéu, hoje no museu histórico franco-pelotense. No mais, austeridade
total. A única foto que escapou da destruição movida por Francisca, ao
suspeitar das longas viagens empreendidas por seu marido com o capataz Blau, mostra
um homem sisudo, rosto afilado, olhar baço, idade indefinida, sem atrativos
aparentes. A obra literária que legou a seus conterrâneos, porém, revela um
homem de fina verve, irônico, astuto e observador como poucos. A construção de
tipos como Romualdo, os ‘causos’ por ele narrados em linguagem popular, sem
meias palavras, a imaginação brotando intensa em cada linha, a fantasia que se
assenhora da narrativa sem preocupação formal, fluindo vívida aos olhos do
leitor, tudo leva a crer que o escritor manteve viva a chama que conheceu em
terras cariocas e que prematuramente teve que relegar ao abandono. Rompendo uma
tradição europeizante voltada ao cultivo dos valores mais aristocráticos, e
focando a narrativa em seres até então sem a menor expressão social, as
histórias geradas em sua terra natal (publicadas postumamente) passam a ser entendidas
como elegias ao bravo homem do campo, seus costumes e raízes. Uma nova vertente
acadêmica sustenta, porém, com base em diários encontrados num prédio em
demolição, que João criara tais tipos com intuito de ridicularizar a cultura
grosseira em que fora criado e que era incapaz de reconhecer o valor de um
homem como ele, constantemente escarnecido pelos gestos e voz delicados, pelo
sotaque levemente afrancesado que fazia questão de cultivar e até mesmo pelo
hábito de vestir a mais fina casimira inglesa quando em inspeção pelo campo.
“La revanche de la ‘biche’” seria o título mais adequado à obra do escritor,
segundo essa tese. Louvação ou crítica,
elogio ou deboche, o fato é que João Simões era um ser atormentado, que se
envolvia em empreendimentos de todo tipo, sempre em busca do quê não se sabe,
tamanha a diversidade de suas invectivas. Riqueza? Prestígio? Conhecimento?
Poder? O vidraceiro, fumageiro, jornalista, industrial, minerador, impressor,
acadêmico, tabelião, comerciante e capitão fracassaram em sua tentativa de
resposta, conhecendo a morte aos 51 anos de idade, em completa pobreza, sem
deixar semente. O escritor, porém, sobreviveu a todos. Pena que vingança seja
prato que se come frio.
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