segunda-feira, 27 de agosto de 2012

AS DORES DO AVESSO

Vidraceiro, fumageiro, jornalista, industrial, minerador, impressor, acadêmico, tabelião, comerciante, capitão da guarda, escritor. Não seria por falta de idéias que Netinho, como a ama o chamava, deixaria de fazer sucesso nas bandas de Pelotas, onde nasceu nos idos de março de 1865.  Terceiro na linhagem dos Lopes, desde piá o guri não sossegava, inventando de tudo pra não sair de perto da peonada, para desgosto da viscondessa, mais orgulhosa do título que do neto, para o qual, de resto, não via muito futuro.  Mesmo assim, mandou que caprichassem na bagagem que o acompanhou ao Rio de Janeiro quando a puberdade no meio da bicharada tornou-se mais incômoda do que educativa. A capital federal haveria de ensinar-lhe os modos que os meios exigiam. Ensinou-lhe muito mais do que isso. A começar pelo clima. O calor constante, que no início não o deixava dormir, com o tempo foi amansando-lhe o corpo, relaxando os nervos, desobstruindo caminhos que sequer sabia existirem. E que se intensificaram expressivamente quando conheceu Olavo, com quem viria a compartilhar os bancos na faculdade de medicina, poemas discutíveis e, segundo as más línguas, muito mais do que línguas. Presença constante nas soirées promovidas por Machado, presença infalível nos teatros e cabarés da Lapa, João não se fazia de rogado quando o entrudo tomava as ruas e poás e lantejoulas substituíam o pincenê que o deixava mais vesgo ainda. Nessas horas a descontração era total, com a dupla Joanita & Bilaquinha causando tanto furor que o velho visconde não teve outra saída a não ser trazê-lo de volta ao hospitaleiro ar das charqueadas sulistas. Com a desculpa de saúde frágil, ficou sob a asa materna até que o avô lhe arranjasse a esposa que assegurasse a honra e a progênie que nunca veio. João fez a sua parte. Deixou crescer o bigode, passou a usar óculos e, do antigo amor, preservou apenas o vício de comer negrinhos a qualquer hora do dia. E umas odes líricas muito bem guardadas no forro de um antigo chapéu, hoje no museu histórico franco-pelotense. No mais, austeridade total. A única foto que escapou da destruição movida por Francisca, ao suspeitar das longas viagens empreendidas por seu marido com o capataz Blau, mostra um homem sisudo, rosto afilado, olhar baço, idade indefinida, sem atrativos aparentes. A obra literária que legou a seus conterrâneos, porém, revela um homem de fina verve, irônico, astuto e observador como poucos. A construção de tipos como Romualdo, os ‘causos’ por ele narrados em linguagem popular, sem meias palavras, a imaginação brotando intensa em cada linha, a fantasia que se assenhora da narrativa sem preocupação formal, fluindo vívida aos olhos do leitor, tudo leva a crer que o escritor manteve viva a chama que conheceu em terras cariocas e que prematuramente teve que relegar ao abandono. Rompendo uma tradição europeizante voltada ao cultivo dos valores mais aristocráticos, e focando a narrativa em seres até então sem a menor expressão social, as histórias geradas em sua terra natal (publicadas postumamente) passam a ser entendidas como elegias ao bravo homem do campo, seus costumes e raízes. Uma nova vertente acadêmica sustenta, porém, com base em diários encontrados num prédio em demolição, que João criara tais tipos com intuito de ridicularizar a cultura grosseira em que fora criado e que era incapaz de reconhecer o valor de um homem como ele, constantemente escarnecido pelos gestos e voz delicados, pelo sotaque levemente afrancesado que fazia questão de cultivar e até mesmo pelo hábito de vestir a mais fina casimira inglesa quando em inspeção pelo campo. “La revanche de la ‘biche’” seria o título mais adequado à obra do escritor, segundo essa tese.  Louvação ou crítica, elogio ou deboche, o fato é que João Simões era um ser atormentado, que se envolvia em empreendimentos de todo tipo, sempre em busca do quê não se sabe, tamanha a diversidade de suas invectivas. Riqueza? Prestígio? Conhecimento? Poder? O vidraceiro, fumageiro, jornalista, industrial, minerador, impressor, acadêmico, tabelião, comerciante e capitão fracassaram em sua tentativa de resposta, conhecendo a morte aos 51 anos de idade, em completa pobreza, sem deixar semente. O escritor, porém, sobreviveu a todos. Pena que vingança seja prato que se come frio.



segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DING-DONG: A CIDADE CHAMA


Dizem que Érico Veríssimo, quando indagado sobre a cidade em que vivia, respondia com orgulho: sou de uma cidade que tem uma orquestra sinfônica.  Já eu, Clarice Müller, nascida e criada nessa mesma cidade, respondo, com vergonha: sou de uma cidade que acolhe com festa um shopping, mas rejeita que sua sinfônica ali se instale; sou de uma cidade que por décadas aguarda a finalização de um teatro dedicado à sua maior cantora; sou de uma cidade que acabou, sem pestanejar, com o carnaval de rua, e jogou o que resta para os confins mais inabitados; sou de uma cidade que canta as façanhas do passado, mas desdenha a arte do presente; sou de uma cidade que impõe toque de recolher a seus habitantes. Sim, agora diversão e arte cumprem expediente de escritório. Agora a ordem é cineminha e cama, comida em casa, que na saída tá tudo fechado. Como a cabeça de quem nos governa.  Fechar bares, isolar torcidas, logo, logo, cercar parques, isso lá é jeito de se administrar uma cidade???  Porém, como sociedade se faz fazendo, se os comerciantes, empregados, clientes, artistas, tutti la gente se juntarem, dá pra dar um basta nessa idiotice. Impor respeito, sabe como é? Não aceitar a muquiranagem como destino histórico, o sono como ideal de vida, o tédio como meio, a mediocridade como fim. Cidade-dormitório? Vão se catar! É preciso pensar e agir grande, transformar Porto Alegre num pólo irradiador de cultura, com o diferencial que um Village, uma Lapa trazem em prol da felicidade geral da nação, na falta de neve e chocolate amargo, claro.  Não dá é pra dormir no ponto. Achar que, com o tempo, tudo se ajeita, se resolve. Ahã. Foi com toque de recolher que acabaram com o Bomfim, que só agora, mais de duas décadas passadas, lentamente ressurge. Quer ver esse filme de novo? É só cruzar os braços. Falando claro: estou incomodada, mas não vou me mudar, eu proponho é mudar. Junto contigo. Topa? Então compartilhemos, pois.
PS: NAO SOU CANDIDATA A NADA.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

PÉ ANTE PÉ


Pé ante pé
Dia a dia
A cerca é a mesma mesmo sendo outra
A vida é a mesma mesmo sendo outra
O que se repete é o fugaz da memória
Das lajes rosadas
Dos muros de hera
Do riscado do jogo:
Amarelinha, sapata, gude
De quem nunca alcança o céu.
Agora os passos são outros
E mesmo assim são os mesmos
Sem poesia
O pichador despenca a letra
Quebra a costela – não a pose
É gangue! é gangue! é gangue!
Do térreo-fundos em que me encolho
Gritos sirenes buzinas estampidos
Varam a madrugada que já conheceu
Meus passos, meus sonhos, meu baco
E agora faz roer a bruxa que há em mim
O toque de recolher matou a folia
Adeus, sinfonia
Porto Alegre Porto Seco de alegria
A cidade quer dormir
A cidade quer morrer
Pé ante pé
Noite após noite
A cerca eletrifica o gato
Mas não alcança o rato
Na medida do possível
Meu desamor é todo teu.
Porto Alegre é (fill the blank) demais.