sexta-feira, 5 de setembro de 2014

SALTO NO ESCURO


Entre as várias formas de morrer ou matar, há sempre uma preferida: a que não é a sua. JP não escolheu aquela morte, aquele dia, o modo. Morreu numa idade em que botinas desamarradas combinam com calças justas, cavanhaque e garotas que conversam muito enquanto dão. Para essas garotas talvez a morte de JP não causasse surpresa, fechava com o ar de tô nem aí que lhe cairia melhor ainda se, de fato, ele fosse Rimbaud. Mas não era. Seu estilo literário era não ter estilo algum. A literatura era seu tatame existencial: quanto mais plúrimo, multiplicado, desconexo, melhor o exercício. Jamais se repetia, era o que pensava. Homens contemporâneos não se fixam no passado, homens jogam.
 O outro lado de JP chamava-se Rob (leia-se Rob), usava botinas, calças justas e cavanhaque com o mesmo aplomb e comia garotos que não falavam enquanto trepavam e não falavam em geral. Rob era critico, Rob era a porra da pedra no sapato de JP, que se desdobrava pra demonstrar que não dava a mínima, mas todo mundo sabia que dava, como dava. Quando saiu o primeiro livro de JP, “Adiós, tio Chico”, Rob o devorou ao cabo de uma noite drunks & drugs na companhia de dois dançarinos da Madona que só vendo, e ficou tão agradecido por ter conseguido beijar os pés da Deusa, que decidiu ser bonzinho com o primeiro que lhe caísse em mãos, JP no caso. Para sustentar, a seco e na cara do editor, a merda que jogou na rede como sendo o novo ginsberg dos tamoios paulistanos, Rob desenvolveu teses que até agora respingam na reputação de ambos, criador e criatura. Pra consciência não pesar, de vez em quando repete a louvação pra outros novatos, mas com mais cautela: só leva quem come.
O day after de JP foi outra coisa. Também foi ao show da Madonna, mas não comeu nem bauru na esquina, foi deitar com uma dor de cabeça insana, vomitou uns troços verdes e acordou com o pior humor do mundo, o que de raro nada tinha. A última ex dele dizia que se aprendesse a rir das coisas talvez melhorasse aquela vida que ela deixou pra trás com muito gosto. Ele deu umas tenteadas nesse sentido. Mais Sacha Baron menos Woody Allen, mais rumba menos stockhausen, mais caminhadas, feira livre, sol e amassos embaixo da escada, coisas do tipo. Aprendeu que não dá pra esperar melancia quando se planta abóbora.
Também não dá pra esperar sucesso quando se escreve pra público tão reduzido que se conhece todos pelo nome. Adiós, tio Chico foi impresso com dinheiro de concurso, e JP não faz ideia de como foi parar na cabeceira de Rob, muito menos como fez pra merecer as loas que com o tempo viraram maldição, mas o fato é que a partir daí pintaram entrevistas, fotos saraus-feiras-lançamentos e, aos poucos, sem quase se dar conta, JP passou a ser conhecido por gente cujo nome desconhecia. Aí começaram as perguntas. E, em algum lugar ainda hoje ignorado, sua morte começou a ser tramada.

2

A pedra. A pedra no sapato. Por que disse aquilo? E justo para a plateia que tenta emular seus passos como se ponte aérea fosse o sonho dourado de todo escritor. Aqueles ali não deviam saber do que falava. Não tinham ideia do que era vender caneta e bala de goma na sinaleira, aguentar atraque de pé rapado na ponte da amizade, achaque de policial na chegada, na ida, na volta, o tempo todo, como se aquelas bugigangas compensassem o esforço das longas madrugadas que não conhecem conforto ou recompensa, à puta que os pariu todos eles, seus merdas, vocês também, aí sentados sobre o carpete porque chão é descontração e tudo flui melhor quando a gente rasteja porque quer, não porque precisa. PQP. Fazer de conta que a transição foi moleza, um bocado de esforço, outro tanto de estímulo e você está lá, sendo festejado pela bicha mais prestigiada do planeta-letra a ponto de não saber como sustentar a fama com o próximo livro, o da gaveta emperrada, terceira abaixo da sua linha de tolerância zero com os calados de espírito, hora em que a biografia ajuda, exemplos de superação são um must na plateia cult, que venga el toro. PQP. Fecha a cara, franze bem a testa pro povo entender que o assunto é sério, sofrimento, inconformidade, é disso que se trata a grande arte mesmo quando você consegue faturar legal com as viagens, projetos, saraus, curadorias, artigos, ensaios, a única coisa que não te dá um puto é o pobre do livro sobre o qual o Rob disse maravilhas e que você, meio displicente, meio sincero, renega no meio dos íntimos, a saber: ela. A verdadeira pedra. Ela.
Bem antes de a cabeleira ruiva lustrar sua face durante a cavalgada mais a foder da sua vida, ela já tinha feito estrago onde você se esconde desde sempre. Homens durões não resistem a mulheres safadas, dizem os livros de faroeste que foram substituídos na estante por Proust, Joyce e outros chatos de galocha, porque tudo faz parte da escalada, a grande escalada onde o ser e o nada é sacrificado em nome da ‘artificialidade necessária’ da literatura contemporânea, o que não invalida o fato: homens durões não resistem a mulheres safadas, o diabo seja louvado! E ela está ali, no meio do caminho, a sua pedra. Cada mordida, suor, enfiada, cada segredo sob o lençol, cada verdade prometida, cada susto, cada raiva, cada sonho e cada promessa, cada canto de cada um se tornam uma palavra a menos, um verbo que se perde, um livro que não será. E você sabe disso, sabe como ninguém. Também sabe o que precisa ser feito. Que há várias maneiras de morrer e matar. Que chegou a hora. Então, debruçado sobre a escrivaninha onde tudo começou, você chora feito criança.

3.

Eu só queria dizer uma coisa: não é nada divertido passar a noite toda ouvindo Maysa, Nina Simone, Amy, sem cigarros e gilete por perto pra radicalizar o espírito, não mesmo. Um espelhinho empoado já servia. Mas nada. A porta continuou batida e fechada, meu corpo voltado para o lado da cama onde teus amados bardos franceses da idade média se amontoam em desordem intocável. Nas calmarias do choro retomei várias vezes o manuscrito da discórdia: Entre as várias formas de morrer ou matar, há sempre uma preferida. A frase me arrepia. Como a lâmina que você percorreu do cóccix ao pescoço, vértebra por vértebra até a ponta da minha nuca quando um, dois, três! e no três! senti a picada e a força do meu homem sentado sobre minhas costas nuas, pau e ferro prensando no ponto em que um espirro pode ser fatal, a pequena morte aliciando a grande e tudo em nome do que, exatamente? Amor? Difícil acreditar nisso. A faca no pescoço não deixa. A raiva, essa raiva que vem disfarçada de crítica imparcial, crueldade necessária, esse tipo de joguinho intelectual que esgrimas dia a dia e que, confesso, me dá nojo. Mas não vou polemizar contigo, não mais. Deixo isso para os conclaves onde quase não te convidam mais, claro que por culpa minha, a nova sensação dos saraus e, pior, sucesso de vendas! Não adianta eu dizer mil vezes: é só literatura, querido, Baker Street 221-B não existe, Molly Bloom fala demais, só os bisontes das cavernas sobreviverão aos homens. Nosso medíocre destino é comum, não nascemos pra Cervantes, fazer o que? Inveja é desperdício, JP, mas se teu caminho é me renegar, ferir, que assim seja. Não diga que não te avisei. Também já fiz minha escolha. Adivinha qual é.
Vou para a sala e me preparo. Posição de lótus no futon para alinhar físico e mente. Elementar. Abdômen teso, braço esquerdo apontado para o alto, o direito bate no abajur, o troço cai, calma, calma, chega de lótus, nada funciona, os dentes rangem direto, deu pra mente quieta, espinha ereta e coração tranquilo. A geração xilocaína, da qual faço parte, aconselha cautela, um passinho à frente, faz favor, mas isso é coisa de quem não compra corda com medo de se enforcar. Meu negócio é jump, jump, jump! Repita comigo: Entre as várias formas de morrer ou matar, há sempre uma preferida. Estendo os lençóis, recolho as roupas, desligo o som, bebo a segunda xícara de café preto, forte, sem açúcar, lavo a louça, guardo as facas no estojo, uma na bolsa – não custa – e saio. Quero manter na pele as marcas todas e, se vacilar, que teu cheiro me acompanhe até o fim. Quando alcanço a rua, o figurino já é outro, preto, altivo, seguro, Milady de Winter da cabeça aos pés, só falta o anel que forja a vingança. (Gostou? É assim que se vende livro, baby, apelando pro atávico). E quando eu entrar na biblioteca onde a tese inacabável é pretexto pra fugir de mim, não escutarás meus passos subindo a escada, não conhecerás a maciez das luvas pretas que estico até os punhos, nem o farfalhar dos livros que se deslocam devagar às tuas costas, sequer perceberás que a Comédia Humana se joga toda sobre ti, vinte volumes, edições Galimard, capa dura, junto com a estante metálica que, ups!, cai pelo excesso de peso. Corroída pela dor, mandarei gravar, na urna que abrigará tuas cinzas, a frase preferida: Entre as várias formas de morrer ou matar, há sempre uma preferida: a sua.

4.

Salto no escuro, quarto volume da coleção Revivendo os clássicos, faz jus aos personagens que a inspiram. No caso, Milady de Winter, a antagonista inesquecível de Dumas em Os três mosqueteiros, é soberbamente reinventada por Aramis, cujo nome também daí deriva. Num estilo que está qualquer coisa entre o desbocado e um conto moralista do começo do século 20 (digo isso em relação ao tom meio fabular, episódico, parece locução em off de filme de Tim Burton ou Wes Anderson), a obra tem como ponto de partida a conturbada relação da autora com o também escritor JP, que na década passada usufruiu de relativa fama no meio literário, até sumir de cena num incidente até hoje não esclarecido. Ao leitor desinformado: Aramis, autora de Salto no escuro, despontou como a maior revelação literária desde Clarice ao vencer o concurso Portugal-Telecom em que seu parceiro não se qualificou para as finais e, dizem as más línguas (más? Quando se trata de JP nada é mau o bastante, se me permitem a franqueza), foi o estopim para a escalada de conflitos que são narrados com maestria no livro. A frase de abertura do romance joga o leitor numa trama que não se consegue largar até o fim: “Entre as várias formas de morrer ou matar, há sempre uma preferida: a que não é a sua.” Capítulo a capítulo somos enredados nos conflitos de JP com sua infância difícil, a morte dos pais e irmãos numa parada de ônibus, o primeiro contato com os livros, a dura vida de camelô, as oficinas literárias, o livro pago com as próprias economias, a repercussão, o sucesso, as traições dos amigos, as relações amorosas, o trágico fim. Aramis consegue atingir o tom certo na descrição do encontro final do casal (alerta de spoiler!) na biblioteca da universidade onde ocorre a luta corporal, o sangue abundante, os gritos, o descontrole, a escada que balança e cai, JP sendo soterrado por 56 volumes dos Arquivos do Inferno que foram renegados por P. Coelho (material para novo Best-seller, façam suas apostas, meus senhores). A narrativa tem um ritmo impressionante e ao final da cena fica-se sem saber o que de fato ocorreu, se foi imaginação ou realidade, se JP pereceu ou fugiu (o corpo nunca foi encontrado), se o incêndio foi criminoso ou acidental (jornalistas de plantão: não há qualquer B.O. a respeito nas DP´s de SP). E a verdade é: quem se importa? Quando se trata de literatura, tudo é ficção, e a maneira, entre intimista e descolada, com que Aramis traça um verdadeiro retrato da vida intelectual e mundana nas metrópoles tupininquins a coloca no mesmo nível de Nabokov, Franzen, Lessing. Aramis tem talento de sobra para ficar, deitar e rolar. Knausgard que se cuide!
Blog do Rob, postado às 20h04m de 02/09/2014.
Reações: 



domingo, 5 de janeiro de 2014

POBRE PORÉM LIMPINHO?

Rodoviária de Capão da Canoa, manhã de verão – um pouco antes do inicio da viagem faz-se necessária uma passadinha no banheiro feminino, surpreendentemente limpo e arejado, com ares de recente reforma. No cubículo, a surpresa ruim: cadê o papel higiênico? A mulher da limpeza esclarece: papel e sabonete tem que pedir no Setor de Despacho. Não resisto ao deboche: então me passa o formulário. Não precisa de formulário, ela explica, é só ir na janelinha que fica lá no fim do prédio e pedir o material no setor.  Minha cara de maus bofes faz com que se apresse: se não gostou, reclama pro DAER, eles é que vieram com essa. Ah tá. A segunda alternativa é usar o banheiro do ônibus, que fica chaveado em viagens inferiores a 3 horas, como ouviu do motorista a passageira que dele quis fazer uso durante a viagem. A terceira alternativa, usar o da rodoviária da Capital dos Gaúchos (quanto orgulho, oh!), demanda o pagamento de R$ 2,25 para se usufruir de material de limpeza de última categoria, sob supervisão da mulher que controla a roleta para que não haja abuso, sabe como é, quem não gostaria de roubar uma lixa como aquela?Enfim, até no mais íntimo de nossas necessidades há um burocrata ou administrador de olho no nosso rabo, achando que está fazendo uma grande economia surrupiando ou suprimindo material essencial à higiene (uma irmã minha defende a tese de que todo homem tem um genoma de porco – até agora não encontrei desmentidos). Esse tipo de ordem burra, que prevalece nos banheiros do país de ponta a ponta, presta um desserviço tremendo à saúde pública, como tanto alertou Osvaldo Cruz, que pra esses ignaros deve ser zagueiro do Mengo, algo assim. Então dou uma sugestão pra turma da imprensa que pode estar me lendo: que tal botar o dedo nessa cumbuca e ver quem fatura com essa porcaria toda? A quem serve? Entrevista os usuários e bota médico na parada pra dizer o óbvio: as piores pestes vêm dos menores bichinhos, esses que proliferam justamente porque não se lava as mãos, por exemplo. O efeito colateral de uma investigação assim seria tão benéfico quanto: por algum tempo a bobajada das matérias jornalísticas de verão teria alguma utilidade afora o uso obvio do papel pelos motivos acima expostos. E tenho dito.