sexta-feira, 26 de outubro de 2012

LER É DEMAIS


Ler é bom. Ler é tri. Ler é demais. Demais mesmo. Em qualquer sentido que se entenda. E, ao contrário do que se pensa, a web não veio atrapalhar hábitos de leitura, veio é incrementar o processo com doses razoáveis de dispersão e nonsense. A quantidade de contos, crônicas, links, podcasts, vídeos, artigos e textos jornalísticos, artísticos, literários, políticos, espirituais, do raio que o parta que são espargidos sobre nós diariamente é espantosa. Tudo sob forte recomendação, ressalte-se. Produz-se tanto nestes tempos, que o ler quase não abre tempo para o fazer, então a leitura diagonal, de vesgueio, passou a ser a regra, vez que não basta ler, é preciso também curtir, comentar ou compartilhar, coisas que por sua vez provocam novas reações que demandam mais atenção e assim a coisa vai, vai e vai, não me pergunte pra onde. Mas, por isso mesmo, tem horas em que bate uma vontade imperiosa de trocar a banda larga pela bunda larga no sofá, um alentado livro nas mãos para mergulhar, com toda calma, em outros universos, siderais ou existenciais. Segundas-feiras chuvosas são ótimas para isso. Qualquer dia chuvoso é ótimo para isso. O mais difícil é escolher a coisa certa pra entrar de chofre.
Se você estiver cansado da multiplicidade de tudo (múltiplo passou a ser adjetivo saidinho, se deu pra perceber) e preferir adentrar num universo já conhecido, a literatura policial não te deixa na mão. Quem faz carreira no ramo é porque já criou um detetive-policial-investigador com características bem marcantes, num cenário bem definido e todo um jogo de relações familiares e profissionais que fazem com que o dito se torne uma pessoa da casa, por assim dizer. Quando você pega um livro da P. D. James, por exemplo, sabe de antemão que vai encontrar o inspetor-superintendente Adam Dalgliesh fazendo uso de sua inteligência e sensibilidade de poeta (sim, ele é poeta e dos bons) para desvendar os crimes que ocorrem entre jardins e escarpas britânicos, esfera de atuação da Scotland Yard, sempre auxiliado por uma equipe que você também já conhece, de modo que pode auxiliar o inspetor no que for preciso, coisa que o bom leitor tem o dever de fazer. O mesmo se aplica aos livros que envolvem o delegado Guido Brunetti em Veneza, cujo traçado já se tornou familiar para mim, como se lá tivesse estado; Salvo Montalbano, que me diverte dividindo seu tempo entre a busca por criminosos e por tascas onde comer as melhores sardinhas, personagem por sua vez inspirado em Pepe Carvalho, que Vásquez-Montalbán criou para exibir dotes culinários refinadíssimos enquanto desvenda de crimes passionais a políticos, ao contrário do inspetor Maigret, que soluciona mistérios tomando doses impressionantes de calvados desde as primeiras horas do dia, enquanto que Kurt Wallander se esquece de fazer uma coisa e outra mesmo quando a Suécia enregela seus ossos e Botsuana aquece a corpulenta e doce Preciosa Ramotswe, a primeira detetive daquele recanto africano.
Todos esses mundos chegam a mim por meio da leitura paciente, atenta, que nenhuma web me dá, por melhor que seja. Isso quando chove. Nos outros dias, o universo se multiplica mais ainda e expande suas forças sobre o fazer estético, quando então me permito comentários inúteis como este que acabo de escrever para que alguém, em algum lugar, possa ler, curtir, comentar, compartilhar e, de preferência, não deletar. Bom apetite!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

FIDALGUIA

GOSTAR. Palavrinha comum e ao mesmo tempo muito propícia a suscitar as maiores polêmicas e até mesmo cizânias quando o bicho da certeza nos morde e bota os reis a estrilar na barriga. Pra maioria de nós, gostar pode passar ao largo de questões como estrutura, sintaxe, gênero e o kit analítico padrão. Pode vir lá do fundo, daquelas áreas meio nebulosas onde mal tocamos e que aos poucos se enriquece com o que vamos adquirindo ao longo da vida, sem falar na multidão de seres imaginários que nos cochicha aos berros quando estamos a ponto de tomar decisões estéticas. É com grande alívio, portanto, que me declaro essencialmente leitora e, como tal, não preciso entender de nada, basta-me o fruir, no ritmo e modo que quiser, das minhas páginas eleitas. Posso dizer, por exemplo, sem receio de me botarem no pelotão de fuzilamento da correção artística: não gosto de Nelson Rodrigues. Não mesmo. Tenho idade suficiente para ter lido as crônicas que ocupavam página inteira na Folha da Tarde, nas quais destilava o que tinha de pior em termos de misoginia, política, moral, sexo. Também estudei suas peças quando cursava arte dramática no CAD, onde a bateção de cabeça pro velho dá nos nervos. Mulheres, padres e comunistas compunham a tríade contra a qual não poupava um milímetro de acidez, assim como todas as formas de sexo, visto sempre na forma de tara e perversão, o que não deixa de ser bem a cara de Nelson, um moralista que fazia parte do primeiríssimo time do reacionarismo. Escrevia muito bem, claro, que burro não era, mas competência não põe mesa quando a serviço dos piores propósitos, come on. E eu, talvez por defeito genético ou estético, sou chegadinha numa fidalguia. Em caras como o Gore Vidal, de quem estou lendo o Lincoln com especial deleite, porque, embora não se furte a espelhar a dor e o horror, não deixa de refletir sobre a grandeza humana, sem a qual a vida é nada, estou certa? Gosto de gente que se posiciona sobre as coisas, que tem bandeiras, que acredita, pensa, faz. Esse papinho de desintegrar tudo numa miscelânea artística sem pé nem cabeça e relativizar valor como se fosse babaquice jurássica é papo de bandido, sinceramente, papo de bandido. Presta um desserviço enorme à cultura. Confesso-me, portanto, fã de escritores que pensam o mundo na escala do universo, e não na arraia miúda da mesquinhez, onde Nelson chafurdava com tudo. Assim, se a coisa for de tomar partido, não me avexo nem um pouco, volto ao tempo das matinês no cinema do meu avô, e bato os pés com força quando o mocinho vem chegando. Xô, Nelson! Viva Vidal!